Ernesto Nazareth por completo
POR ANDREI REINA
Na última quarta-feira, a pianista carioca Maria Teresa Madeira recebeu o Prêmio Bravo! 2016 de Melhor Disco Erudito, em São Paulo, pela gravação em 12 volumes da obra integral de Ernesto Nazareth (1863–1934) para piano. O troféu foi entregue por Claudia Toni, especialista em políticas públicas para cultura e filha do maestro Olivier Toni, que faleceu no último sábado (25). Ao anunciar a vencedora, Toni destacou não só o legado do pai como a luta das mulheres por reconhecimento no universo da música de concerto. Após a cerimônia, Maria Teresa, que tocou o projeto de forma independente, me contou que se sentia “muito coroada, abençoada, por ter sido premiada, por conta de tanta loucura que foi esse processo todo”. E comentou o fato de ainda não ter feito um lançamento paulista para o projeto: “Estou indo a São Paulo receber um prêmio e eu não mostrei esse trabalho aqui”.
O júri do prêmio destacou a importância histórica da empreitada e a consistência do trabalho da pianista, que incluiu completar peças que o chorão deixou incompletas. O crítico João Marcos Coelho afirmou que a produção de Ernesto Nazareth “merecia este trabalho rigoroso de Maria Teresa Madeira, que vem se dedicando sistematicamente ao compositor em toda a sua carreira” — como, por exemplo, no refinado disco Sempre Nazareth (1997) feito em parceria com o bandolinista Pedro Amorim. Marcos Coelho disse ainda que o conjunto permitia “observar a evolução do pianeiro, desde a primeira criação, a corriqueira polca-lundu Você Bem Sabe(1878), até a derradeira, a chopiniana valsa lenta chamada Resignação(1930)”. Já Irineu Franco Perpétuo classificou a gravação como um “projeto inédito e fundamental” feito “com muita garra e dedicação”. Em novembro do ano passado, o jornalista publicou um ensaio em que descrevia o lançamento como um “daqueles eventos que fazem a gente oscilar entre a alegria e o pasmo. É uma beleza poder ouvir todo o Nazareth, mas como é possível que isso só esteja ocorrendo agora, mais de oito décadas após a sua morte?”, se perguntou.
Em entrevista à Bravo!, Maria Teresa Madeira falou sobre sua relação com a obra de Ernesto Nazareth, o lugar que ela ocupa na música brasileira e as etapas envolvidas em sua gravação na íntegra. Leia a seguir:
Apesar de sua importância inquestionável para a música brasileira, somente agora a obra de Ernesto Nazareth pode ser ouvida na íntegra. Por que acha que levou tanto tempo?
Não sei ao certo… Mas posso apontar, por exemplo, que a obra toda dele ficou disponível há pouco tempo, graças a pesquisadores como o Alexandre Dias que trabalhou nisso durante muitos anos. Ele fez o texto desta Integral.
Acho que algumas pessoas já pensaram nisso sim, inclusive tive convite de duas pessoas interessadas em produzir esta Integral que não conseguiram patrocínio na época que apresentaram seus projetos. A partir daí fiquei com esta ideia de gravá-la e, quando surgiu a oportunidade, não desperdicei.
Você já gravou discos com o repertório de Nazareth, mas esta caixa com 12 CDs parece um mergulho mais profundo em seu universo musical. O que a levou a gravar sua obra completa?
Paixão, muita paixão. Muita reverência por Nazareth e sua obra. Além disso, gosto de desafios, mas eles tem que me parecer possíveis (risos)… Esta vertente da música brasileira me interessa muito. Tenho muita empatia com este repertório. Ele me estimula, me ensina e me fortalece.
Poderia contar um pouco como foram as etapas do trabalho, como o levantamento das partituras, reconstituição da peças incompletas e a preparação para a execução ao piano?
As partituras estão disponíveis em dois sites: ernestonazareth.com.br e também no ernestonazareth150anos.com.br. A reconstituição, ou seja, completá-las para a gravação, foi feita por mim mesma. Virei co-autora (risos). Estas obras foram gravadas no final do processo todo. Pensei na época que depois de ter gravado mais de 200 músicas de um mesmo autor estaria apta a “improvisar” algumas passagens dentro do estilo proposto em cada um dos manuscritos. E deu certo, pelo menos eu achei coerente e consequentemente me permiti incluir na Integral, para que assim pudesse ser chamada de integral. Ou seja, não faltou nada que se tenha noticia, pelo menos até hoje, que tenha sido escrito por Nazareth.
Ernesto Nazareth e, de modo geral, o choro parecem oscilar entre o erudito e o popular. Na sua opinião, qual é o lugar de Nazareth na música brasileira? Esse tipo de distinção se aplica a um compositor como ele?
Nazareth tem um pianismo peculiar e criou um divisor de águas no repertório pianístico. A música brasileira não foi a mesma depois da obra dele, principalmente a escrita para piano. Quanto ao estilo, melhor dizer que ele pode ser um erudito muito popular ou um popular muito erudito (risos). Sua música se aplica ao piano solo, mas ao mesmo tempo ao conjunto de choro, aos arranjos corais, aos duos, enfim, música boa de ser tocada e boa de ser ouvida. Criativa, bem escrita. Ou seja, música boa, muito boa!
Me lembro da minha sensação ao ouvir Nazareth pelas primeiras vezes. Como sempre gostei de música popular (samba em especial), mas nunca li cifra bem e nem me adaptei com teclados eletrônicos, encontrei em Nazareth uma maneira de me realizar tocando seus tangos brasileiros e me deliciando com o seu suingue. Obviamente depois também me apaixonei pelas valsas, pelos foxes, polcas e por tudo que ele criou.
O que significou para você receber o Prêmio Bravo! de Melhor Disco Erudito?
A gente acha que existe essa possibilidade quando a gente é indicado, mas a emoção na hora é diferente. E eu acho que eu me senti muito coroada, abençoada, por ter sido premiada, por conta de tanta loucura que foi esse processo todo. No fim, eu que tive que arcar com as despesas do projeto. E eu não consegui fazer o lançamento do disco em São Paulo. Então assim, gente, eu estou indo a São Paulo receber um prêmio graças aos jornalistas, à crítica especializada, essas pessoas, eu ganhei e eu não mostrei esse trabalho aqui. Então isso pra mim é um reconhecimento de verdade, porque está lá a caixinha que foi carinhosamente aberta e ouvida. Eu percebi isso hoje: nossa, como tem gente interessada, como tem gente boa, com esses olhos… Eu fiquei muito feliz. Muito feliz.
Abaixo, mais dois tesouros da “caixinha” de Maria Teresa Madeira. O pacote com os 12 CDs está à venda no site da pianista e também está disponível no Spotify (o primeiro volume pode ser ouvido aqui).