Ernesto Nazareth: a partitura do Brasil
Um dos arquitetos da estética musical do País, o anfíbio Ernesto Nazareth (1863-1934) alinhavou o romantismo erudito de Chopin e Beethoven aos lundus, batuques e choros populares das ruas do Rio de Janeiro. Sua produção foi abalroada pela evolução tecnológica da época.
Da venda de partituras para a execução caseira, ao disco, embora como executante ele tenha gravado apenas quatro fonogramas. Além de professor, foi “pianeiro” nos salões de cinema, e nas lojas de música, contratado como mero demonstrador do instrumento.
Alcunhado o “rei do tango brasileiro” – embrião do chorinho, divergente do homônimo portenho – Nazareth tem sua obra completa registrada pela pianista Maria Teresa Madeira, em alentada caixa com 12 CDs, repletos de desempenhos primorosos.
“Foi paixão acima de tudo para encarar um mergulho desses”, ironiza ela. Seu interesse pelo compositor, “desde meus 20 anos”, já se materializara em três discos avulsos, dois deles para o exterior, e dois esboços do projeto completo, enfim concretizado com a verba do Prêmio de Música Brasileira da Funarte, angariada entre 300 concorrentes.
“Mesmo assim, coloquei alguns trocados do meu bolso”, brinca ela. Foi auxiliada pela parceria com o marido, Marcio Dorneles, técnico de som, que montou um estúdio num anexo da casa onde moram, em Laranjeiras, no Rio.
“Durante 14 meses, colocava a meta mensal de quantas músicas deveria gravar”, contabiliza. Intercalou as 215 faixas da caixa, registradas entre abril de 2014 e setembro de 2015, à atividade de professora e excursões como intérprete.
Bacharel em piano pela Escola de Música da UFRJ, com mestrado pela Universidade de Iowa, EUA, esta ex-aluna de expoentes como Heitor Alimonda, Miguel Proença, Sergei Dorenski e Arthur Rowe também atravessou a fronteira, ao tocar com músicos populares como Altamiro Carrilho, Leo Gandelman, Rildo Hora e Paulo Sérgio Santos. Ela sumariza sua afinidade com o autor, num inescapável autorretrato estético: “Nazareth tem o refinamento do erudito e o ritmo da alma brasileira”.
Filho de um despachante aduaneiro e uma pianista amadora, sua mestra inicial, Ernesto Julio de Nazareth, aos 6 anos foi apresentado ao pianista americano Louis Moreau Gottschalk, uma de suas futuras influências.
Estudou ainda com outro americano aqui residente, Charles Lambert, de New Orleans. Aos 14, compôs a primeira polca lundu (Você Bem Sabe) e debutou em recital, aos 16, no Clube Mozart, no Rio. No início da gravação no País, em 1903, seu tango brasileiro Está Chumbado, de 1898, saiu em disco da Banda do Corpo de Bombeiros, regida por outro fundador da MPB, o maestro Anacleto de Medeiros.
Dois anos depois, um de seus maiores êxitos, o tango inaugural Brejeiro, de 1893, tratado por Maria Teresa com aveludado lirismo na caixa, ganhou letra de Catulo da Paixão Cearense e tornou-se Sertanejo Enamorado, na voz do cantor Mário Pinheiro. Outros tenores de massa, como Francisco Alves (Favorito, A Voz do Amor) e Vicente Celestino (Êxtase) enfunaram os dós de peito em versões letradas de suas composições.
A contradição do erudito de viés popular trespassou exegeses de sua obra, como a do musicólogo Mário de Andrade em palestra prefácio de uma exibição do pianista no Teatro Municipal, de São Paulo, em 1926. “De todas as músicas feitas para as necessidades coreográficas do povo, ela é a menos tendenciosamente popular”, distinguiu.
Homenageado por Villa-Lobos no Choro Nº 1 para violão, ele retribuiu com a peça de concerto Improviso, rendilhada pelo piano epitelial de Maria Teresa. Artífice de indeléveis matrizes do choro como Odeon, Apanhei-te Cavaquinho, Ameno Resedá, Escovado, Tenebroso, Escorregando, Nazareth teria inspirado o personagem Pestana, do sarcástico conto Um Homem Célebre, de seu contemporâneo Machado de Assis. Emparedado por retratos de clássicos europeus, os quais tentava emular, o pianista ficcional só alcançava sucesso a bordo de polcas populares, que desdenhava ao compor.
O paralelo motivou o ensaio Machado Maxixe: O Caso Pestana, de 2004, do professor e músico José Miguel Wisnik, letrista de mais um totem nazarethiano, Bambino, gravado por Elza Soares, em 2002. E também a tese de mestrado de outro professor e músico, Cacá Machado, O Enigma do Homem Célebre – Ambição e vocação de Ernesto Nazareth (IMS, 2007).
“O sotaque sincopado da música de Nazareth encaixava-se perfeitamente à construção simbólica de uma cultura musical autônoma, moderna e genuinamente nacional, características necessárias para a legitimação do novo regime”, escreve ele, a propósito da passagem do pianista dos salões da aristocracia imperial para a elite da Primeira República.
E aponta a contradição: “Ao mesmo tempo, lembrava a negação disso tudo, o passado dependente, escravocrata e bárbaro”. Por conta do paradoxo, um dos motivos da vitalidade de seu repertório, em trânsito entre polcas, quadrilhas, schottischs, valsas, maxixes, gavotas, tangos, foxtrotes, hinos e até sambas carnavalescos, Cacá o situa num vácuo: “Nem como tradição da música erudita nacional, nem inteiramente como música popular folclórica”.
Nazareth ainda ruminava frustrações. Ao interpretar uma peça de Chopin para o pianista polonês Arthur Rubinstein, de passagem pelo Brasil, foi repreendido pelo visitante, interessado apenas em seus tangos brasileiros.
Durante um recital da pianista erudita Guiomar Novaes, já adoentado, corroído pela surdez e a sífilis, responsável por seu internamento e morte no hospício, lastimou-se por não ter podido estudar no exterior. Mas o alcance de seu extraordinário legado, cada vez mais amplo, redime o final inglório, pontuado pela valsa lenta Resignação.
Trata-se de um de seus temas mais surpreendentes para Maria Teresa, ao lado de Elegia para a Mão Esquerda, foxtrotes como Xangô, Até Que Enfim e as peças virtuosísticas Turuna, Batuque, Guerreiro e Labirinto. Admirado por contemporâneos como o erudito francês Darius Milhaud, que incorporou trechos de suas músicas às peças Le Boeuf Sur Le Toit e Saudades do Brasil, Nazareth seria revisitado por luminares posteriores, de instrumentos e procedências estéticas variadas.
Devotaram álbuns à sua obra Jacob do Bandolim, Arthur Moreira Lima, Antonio Adolfo, Maria Eudóxia de Barros, Dilermando Reis, Mú Carvalho, André Mehmari, Roberto Szidon, Carolina Cardoso de Menezes, Maria Josefina e Francisco Mignone. O panorama abrangente propiciado pela caixa Integral permite a garimpagem de pepitas ainda menos óbvias. Como as miríades de notas da valsa Elétrica, a compassada Eponina, o autoexplicativo maxixe Dengoso e as síncopas travessas da polca-tango Rayon D’or.
Há ainda curiosidades, como O Futurista, réplica romântica ao movimento homônimo, lançada no ano da Semana de Arte Moderna, a tenentista Marcha Heroica dos 18 do Forte, algumas odes oportunistas (Saudação ao Sr. Prefeito Alaor Prata), e um provável tributo ao matricial Frédéric Chopin, a densa Polonesa, de mais de dez minutos.
Um roteiro multidisciplinar, digno de mestre-escola. “Ele sabia escrever, era um pianista muito bom, um compositor muito atuante e conhecia o instrumento, suas possibilidades sonoras e técnicas”, decupa Maria Teresa.
Publicado 25/11/2016 10h18